Nas últimas semanas, um grupo de refugiados que estão há anos em detenção migratória na Austrália estão chamando atenção para a crueldade e o desastre humanitário desta prática política. O Migrações em Debate, na pessoa da fundadora Camila Barros, teve acesso a Medhi Ali, um refugiado que está preso há 9 anos, desde que chegou a Austrália com apenas 15 anos de idade.

Refugiados detidos em um centro de detenção na Austrália, à esquerda o refugiado Medhi Ali, que está há 9 anos preso em detenção. Fonte: BBC News

Na ocasião, Medhi conversou conosco pelo telefone e compartilhou os seus pensamentos e questionamentos acerca do limbo jurídico em que vive, mesmo não tendo cometido nenhum crime; e a crueldade que ele mesmo tem vivido na pele como um refugiado detido.

Confira a nossa entrevista. E se esse conteúdo te fez refletir, compartilhe com outras pessoas.

Migrações em Debate: Medhi, é um prazer poder conversar com você e a partir da sua vivência, trazer para o Brasil essa discussão sobre a situação dos refugiados nos centros de detenção migratória.  Você poderia compartilhar conosco sobre de onde você é, e algumas das situações que vivenciou no seu país de origem que te levaram a fugir?

Medhi: Obrigado. Eu nasci no Irã, sou iraniano. Antes de chegar à Australia, passei por dois países, e posso dizer que vivi situações traumatizantes no meu país de origem e em um país de trânsito que hoje fazem de mim uma pessoa refugiada. Infelizmente não posso compartilhar muitos os detalhes do que eu vivi, por que na verdade, eu nunca consegui falar sobre isso com alguém.

Migrações em Debate: Você tinha apenas 15 anos quando chegou na Austrália. Como foi o tratamento das autoridades australianas neste primeiro momento? Naquela época, quais sentimentos passavam na sua cabeça sendo um adolescente?

Medhi: Eu estou em detenção deste 2013. Eu me senti muito confuso no primeiro momento, e enojado com toda a situação. Eu estava sozinho, cheguei de barco, e a primeira coisa que eles fizeram foi tirar o meu próprio nome. Eles me deram um número, e este número tem sido a minha identidade desde então. Tenho sido tratado como um criminoso até hoje.

Migrações em Debate: Como você sabe, organismos internacionais e instrumentos jurídicos indicam que a detenção migratória é um recurso excepcional e que uma criança só deve ficar detida pelo menor tempo possível. Quais justificativas você recebe ainda hoje do governo australiano para que você permaneça em detenção?

Medhi: Nada, eles não me dizem nada sobre como está a minha situação. E eu os pergunto, mas eles não dizem nada. Não me dão qualquer detalhe. Eu estou em um limbo jurídico, não estou sendo julgado em nenhuma corte, mas estou sendo mantido preso como um criminoso. Mas digo que a nossa situação é pior que a de prisioneiros comuns, por que pelo menos eles recebem uma sentença do crime que cometeram. Eles sabem quando vão poder estar livres. Pelo fato de eu não saber quando vou poder estar livre, minha saúde mental está severamente afetada, a causa do meu trauma é a detenção. Não posso curar o meu trauma enquanto estiver preso aqui, por que a cura para ele é a liberdade. Estar em detenção é a grande doença de tudo. Não se manda um soldado de volta ao terror da guerra para que assim ele seja curado.

Migrações em Debate: Você pode compartilhar conosco como tem sido a sua rotina nestes últimos nove anos como um refugiado detido e, como é o tratamento dentro dos centros de detenção?

Medhi: Eu fico sozinho trancado em um quarto, não há muito o que fazer. Mas tenho tentado ocupar o meu tempo dando entrevistas sobre como é a nossa situação. Também tento ler e escrever, basicamente tento me manter o mais ocupado possível.

Migrações em Debate: Durante a pandemia, todos nós tivemos que conviver com regras de isolamento e distanciamento social. Mas como foi para você vivenciar tudo isso já estando detido e isolado por nove anos?

Medhi: Não houve diferença para mim, eu já estou longe do mundo de toda forma. Então não pude sentir muito as mudanças da pandemia. Eu recebi a minha vacina, mas me pergunto qual é a lógica de receber, se eu sei que mesmo com COVID, eu nunca conseguiria sair deste prédio?

A vista de um centro de detenção migratória. Foto: Medhi Ali – Twitter

Migrações em Debate: Com o caso Djokovic e a dualidade de tratamento das autoridades em relação as pessoas migrantes que permanecem detidas, o que você esperava das autoridades australianas e internacionais?

Medhi: Eu gosto de pensar que a estadia de Djokovic aqui neste centro, trouxe muita atenção para a nossa situação como refugiados. E fez as pessoas ficarem cientes do que anda acontecendo com os refugiados neste país. Eu espero que isso faça as pessoas enxergarem o desastre humanitário que está acontecendo aqui neste momento. Pelo menos, fico um pouco feliz de que as pessoas estejam conhecendo toda essa crueldade

Migrações em Debate: Depois de você já ter vivenciado estas situações desumanas e cruéis, o que hoje te faz ter esperanças para seguir em frente, Medhi?

Medhi: A vida. Eu posso estar livre amanhã ou nunca conseguir sair daqui.  Mas acredito que a vida em si me traz esperança para continuar vivendo. Eu quero continuar vivo e isso me faz seguir.

Protesto de refugiados dentro de um centro de detenção migratória na Austrália. Fonte: SBS

Migrações em Debate: Medhi, você e tantas outras crianças refugiadas tiveram as suas infâncias perdidas devido a um status migratório. Qual seria a primeira coisa que você gostaria de fazer ao ser liberado da detenção?

Medhi: A primeira coisa que eu gostaria de fazer seria dar uma longa caminhada sozinho e livremente, sem me preocupar. Caminharia por longas e longas horas depois de estar todos esses anos trancado neste quarto.

Migrações em Debate: O seu nome tem estado na mídia e muitas pessoas estão se sentido impactadas pela sua história. Como nós podemos contribuir e te ajudar nesta discussão?

Medhi: Acredito que a melhor forma de ajudar e contribuir é criando consciência. Falar sobre o que estamos vivendo aqui é muito importante. Debater sobre o que os diversos grupos de refugiados estão vivenciando pode ajudar as pessoas a criarem mais consciência. Se não podemos mudar essa crueldade, então pelo menos vamos falar sobre ela.

Deixamos aqui o nosso agradecimento especial ao Medhi Ali, e a nossa admiração pela sua coragem em compartilhar conosco as suas vivências. Estamos juntos, conte conosco.

Foto da capa: The Latch

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